sexta-feira, 30 de abril de 2010

Ode Marítima - Fernando Pessoa

Ode marítima

"Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pró lado da barra, olho pró Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos detrás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh'alma está com o que vejo menos.
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.

Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.

Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É - sinto-o em mim como o meu sangue –
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui...

Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve com uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.
(...)"

.........

Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993). 1ª publ. in Orpheu, nº2. Lisboa: Abr.-Jun. 1915. Obtido em http://www.revista.agulha.nom.br/facam04.html



Fernando Pessoa o grande poeta da língua portuguesa constrói lindas imagens sobre o cais, o cais de Lisboa, braço de rio, onde chegam navios nostálgicos, marinheiros solitários que singram o mar com suas velas, que levam produtos nos porões de seus enormes barcos, deixando seu rastro em cada porto, sentimentos de tristeza, longas jornadas e despedidas demoradas, nostalgia, os que ficam e os que partem, saudades de pedra!
Por F@bio

sábado, 17 de abril de 2010

Jubiabá - Jorge Amado

"...Então é para o grande cais dos transatlânticos que se dirigem. Vão ver os homens que embarcam à noite, misteriosamente, levando sob o braço sobretudos e embrulhos; vão ver os homens que trabalham na descarga dos navios. São negros e parecem formigas que levassem enormes fardos. Andam curvos como se em vez de sacos de cacau carregassem sob as costas o seu próprio destino desgraçado. E os guindastes, como monstros gigantescos que rissem dos homens, levantam fardos incríveis que ficam balançando no ar. E rangem e gritam e andam sobre trilhos, guiados pelos homens de macacão que estão trepados dentro dos cérebros dos guindastes."

 




Do Livro "Jubiabá", de Jorge Amado, (pág. 76). Romance. São Paulo: Livraria Martins Editora, 27a. Edição, 1971. 


O livro foi escrito por Jorge Amado em 1935, ainda na fase juvenil do autor que tinha somente 23 anos. Trata da trajetória de Antonio Balduíno, menino pobre e favelado, cuja mãe enlouquece e é recolhida a um manicômio, onde acaba falecendo. Uma vizinha, com apoio de Jubiabá, pai-de-santo e guia espiritual da comunidade do Morro do Capa Negro, leva o menino para ser criado por uma família de classe média branca. Mas Balduíno foge após intriga que o incrimina de desejar a filha do dono da casa, Lindinalva. Torna-se um moleque de rua, lidera uma gangue, como os Capitães da Areia. Cresce e se torna boêmio, compositor de sambas de sucesso que vende para um intelectual. Vira boxeador e após uma derrota, foge novamente, indo trabalhar nas plantações de fumo. Lá se envolve em briga e foge de novo. Torna-se ator de circo mambembe, volta à vida boêmia, reencontra Lindinalva que se tornara prostituta após a falência e morte do pai. Lindinalva, que nunca saíra de suas fantasias sexuais, morre e faz um pedido para Balduíno, que cuide de seu filho. Balduíno torna-se estivador e líder de uma greve. A militância sindical passa a ser razão de sua vida.  
A idéia central do livro é mostrar o surgimento de um líder sindical, a partir do lento amadurecimento do protagonista, rumo à consciência política. É um romance popular característico do "realismo socialista", com elementos sensuais e apimentados da  cena baiana que Jorge Amado soube muito bem retratar. O livro podia se chamar Balduíno, mas o autor preferiu homenagear a cultura negra e seus símbolos tão presentes na Bahia, a quem chama "cidade religiosa" referindo-se à Salvador. 

 
No trecho transcrito, é descrito o cenário do Porto de Salvador dos anos 30 do século passado. O porto conta com personagens misteriosos, como nas novelas noir, mas também com trabalhadores sofridos que carregam fardos ou o "próprio destino desgraçado". Mas esses estão sendo  substituídos por guindastes gigantescos, que nos dias de hoje pareceriam brinquedos. Esses monstros "rangem e gritam e andam sobre trilhos, guiados pelos homens de macacão que estão trepados dentro dos cérebros dos guindastes", uma descrição a lá Tempos Modernos de Chaplin


Uma grande curiosidade da obra é o bar "Lanterna dos Afogados", reduto dos estivadores e boêmios, que inspirou a música de Herbert Viana (veja comentário na postagem abaixo).
Por F@bio