quarta-feira, 30 de junho de 2010

Juventude - Joseph Conrad

"Saímos de Londres com lastro - lastro de areia - para apanhar uma carga de carvão num porto do Norte e rumar para Bangkok ...
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No terceiro dia, o temporal amainou e logo depois um rebocador do Norte nos socorria...Quando entramos na doca já tinhamos perdido a nossa vez de carregar e fomos levados para um ancoradouro onde permanecemos por um mês...
Finalmente, carregamos o navio. Oito marinheiros experientes e dois grumetes. Zarpamos certa noite em direção às boias da entrada das docas, prontos para partir, já que eram boas as perspectivas de iniciar a viagem no dia seguinte (...) A maré estava alta, soprava um vento fresco e chuviscava; as portas duplas das docas permaneciam abertas e os carvoeiros a vapor entravam e saíam no escuro, com suas luzes brilhando, um barulho grande de hélices, tinidos de ferragens e muitas vozes que chegavam aos molhes. Eu olhava a procissão de faróis de proa que subiam e de luzes verdes que desciam na noite quando, de repente, um clarão vermelho piscou à minha frente, desapareceu, surgiu de novo e permaneceu visível. A proa de um navio a vapor surgiu bem próximo...
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No dia seguinte, fizemo-nos ao mar. Quando iniciamos a viagem para Bangkok, já fazia três meses que estávamos fora de Londres. Tinhamos calculado que esse tempo seria de uma quinzena ou pouco mais.
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Tivemos boas brisas, um mar de rosas nos trópicos e o velho Judea movimentava-se com dificuldade à luz do sol. Só fazíamos oito nós - e tudo estalava, segurávamos nossos gorros na cabeça; mas em geral o navio fazia uma média de três milhas por hora. Que outra coisa se podia esperar? O velho navio estava cansado. A juventude dele estava onde está a minha - onde está a de vocês que escutam estas peripécias. E que amigo atiraria a sua idade e o seu cansaço na cara de vocês? Não reclamávamos contra o navio. Para nós, pelo menos os da popa, era como se tivéssemos nascido nele, sido criados ali, vivíamos nele há séculos, jamais conhecêramos outro navio. Seria mais fácil insultar a velha igreja de aldeia por nunca ter chegado a ser catedral.
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(...) O velho navio balançava nas águas, curvado pelo peso da carga, enquanto eu desfrutava da juventude, ignorante e cheio de esperança. O navio singrou as águas por interminável procissão de dias, e a nova popa dourada reluzia ao sol poente e parecia gritar sobre o mar que se envolvia na escuridão as palavras pintadas na grinalda: 'Judea. Fazer ou Morrer'."


Transcrito de "Juventude" (Págs. 15, 17, 18, 19, 22, 34 e 35) , de Joseph Conrad. Romance. Porto Alegre: LP&M, 2006.

Joseph Conrad (1857 - 1924), filho de poloneses, nasceu na Ucrânia à época dominada pela Rússia czarista. A família foi perseguida politicamente e Conrad ficou órfão ainda cedo. Aos 16 anos viajou para Marselha na França para assumir seu desejo de viver no Mar. Obteve a cidadania britânica e acabou abandonando o mar, e uma carreira bem sucedida, para se dedicar à literatura.
Em "Juventude", um velho marinheiro conta sua história: na primeira experiência no mar embarcou eufórico em um velho carvoeiro rumo à Bangkok. Uma viagem de infortúnios, dificuldades, num veleiro aos frangalhos. A tripulação, na sua luta contra as intempéries e infortúnios, acaba criando uma camaradagem e uma união para alcançar o objetivo: levar o velho cargueiro e sua carga ao seu destino final no Oriente. O mar apresenta-se como um convite irrecusável para desbravar o mundo. No livro, Conrad cria linda imagens como: "era um homem triste, com uma lágrima eterna a brilhar na ponta do nariz" ou "no dia seguinte, fizemo-nos ao mar" ou ainda "o velho navio balançava nas águas, curvado pelo peso da idade e da carga". E a saga do Judea estava escrita, como um epitáfio, no seu próprio painel da popa (grinalda): "fazer ou morrer", ou melhor, "fazer e morrer", a sina da qual não podia fugir.
por F@bio

domingo, 20 de junho de 2010

Protopoema - José Saramago


"Do novelo emaranhado da memória,
da escuridão dos nós cegos,
puxo um fio que me aparece solto.
Devagar o liberto,
de medo que se desfaça entre os dedos.
É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos,
e tem a macieza quente do lodo vivo.
É um rio.
Corre-me nas mãos, agora molhadas.
Toda a água me passa entre as palmas abertas,
e de repente não sei se as águas nascem de mim,
ou para mim fluem.
Continuo a puxar,
não já memória apenas,
mas o próprio corpo do rio.
Sobre a minha pele navegam barcos,
e sou também os barcos
e o céu que os cobre
e os altos choupos que vagarosamente deslizam sobre a película luminosa dos olhos.
Nadam-me peixes no sangue
e oscilam entre suas águas
como os apelos imprecisos da memória.
Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga.
Ao fundo do rio e de mim,
desce como um lento e firme pulsar do coração.
Agora o céu está mais perto e mudou de cor.
É todo ele verde e sonoro porque de ramo em ramo
acorda o canto das aves.
E quando num largo espaço o barco se detém,
o meu corpo despido brilha debaixo do sol,
entre o esplendor maior que acende a superfície das águas.
Aí se fundem numa só verdade as lembranças confusas da memória
e o vulto subitamente anunciado do futuro.
Uma ave sem nome desce donde não sei
e vai pousar calada sobre a proa rigorosa do barco.
Imóvel, espero que toda a água se banhe de azul
e que as aves digam nos ramos por que são altos os choupos
e rumorosas as suas folhas.
Então, corpo de barco e de rio na dimensão do homem,
sigo adiante para o fulvo remanso que as espadas verticais circundam.
Aí, três palmos enterrarei a minha vara até à pedra viva.
Haverá o grande silêncio primordial quando as mãos se juntarem às mãos.
Depois saberei tudo"

Poesia de José Saramago obtida no Jornal da Poesia disponível em http://www.revista.agulha.nom.br/1saramago1.html


José Saramago, um dos grandes mestres da lingua portuguesa, com seu estilo inconfundível, nos deixou um rico legado, com obras magistrais. Um novelo que ele soube como ninguém densenrolar e tecer de forma primorosa. Novelo que foi sua linha de vida e criação, um rio no qual navegou o barco de sua pena. Juntas suas mãos, saberá mais ainda agora como tecer a flor do láscio ou já sabia o que bastava? 
Por F@bio

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Profissões Exóticas - João do Rio

"O cigano aproximou-se do catraieiro. No céu, muito azul, o sol derramava toda a sua luz dourada. Do cais via-se para os lados do mar, cortado de lanchas, de velas brancas, o desenho multiforme das ilhas verdejantes, dos navios, das fortalezas. Pelos bulevares sucessivos que vão dar ao cais, a vida tumultuária da cidade vibrava num rumor de apoteose, e era ainda mais intensa, mais brutal, mais gritada, naquele trecho do Mercado, naquele pedaço da rampa, viscoso de imundícies e de vícios. O cigano, de fraque e chapéu mole, já falara a dois carroceiros moços e fortes, já se animara a entrar numa taberna de freguesia retumbante. Agora, pelos seus gestos duros, pelo brilho do olhar, bem se percebia que o catraieiro seria a vítima, a vítima definitiva, que ele talvez procurasse desde manhã, como um milhafre esfomeado.
...
Nos botequins, fonógrafos roufenhos esganiçavam canções picarescas; numa taberna escura com turcos e fuzileiros navais, dois vilões e um cavaquinho repinicavam. Pelas calçadas, paradas às esquinas, à beira do quiosque, meretrizes de galho de arruda atrás da orelha e chinelinho na ponta do pé, carregadores espapaçados, rapazes de camisa de meia e calça branca bombacha com o corpo flexível dos birbantes, marinheiros, bombeiros, túnicas vermelhas e fuzileiros - uma confusão, uma mistura de cores, de tipos, de vozes, onde a luxúria crescia."

Transcrito de "Pequenas Profissões" em "A Alma Encantadora das Ruas: Crônicas", de João do Rio (págs. 54 e 59). Org. Raúl Antelo. Crônica.  São Paulo : Companhia das Letras, 2008. (originalmente publicada com o título "Profissões Exóticas" na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro em 06/08/1904).


João do Rio, pseudônimo de Paulo Barreto (1881 - 1921), foi o grande cronista da cena carioca no início do Séc. XX. Com seu humor refinado retrata uma cidade em transformação. Assumindo-se republicana, a antiga capital da corte passa por intensa reforma urbanística. João do Rio foi um observador atento das ruas, das gentes, das coisas, da urbe. Um andarilho das ruas por excelência que relatou com picardia os hábitos e estilos de vida do carioca.
João descreve a região do porto do Rio, a Gamboa no início do século passado, destacando a cidade viva e pulsante (tumultuária e apoteótica).  Lança luz especial sobre os tipos que fazem da beira do cais seu habitat:  catraieiros (barqueiros), carroceiros, carregadores, marinheiros, fuzileiros, bombeiros e meretrizes. Desenha uma cena que permanece atual nas zonas degradas do cais do Rio (pedaço da rampa, viscoso de imundícies e de vícios), mas na qual o sol continua derramando sua luz dourada.

Por F@bio