quarta-feira, 22 de setembro de 2010

São Jorge dos Ilhéus - Jorge Amado

"...transpôs também ele a larga porta central da casa exportadora ... A casa agora era um prédio de quatro andares, no mesmo local do sobradinho antigo, próximo ao porto. O andar térreo era depósito e ensacamento de cacau, dois salões imensos, cheios até o teto de caroços negros que emanavam um cheiro de chocolate. Subindo pelas montanhas de cacau, homens nus da cintura para cima ensacavam os caroços. Outros pesavam os sacos, ajustandos-os ao peso de sessenta quilos exatos e, depois, as mulheres cosiam, numa rapidez surpreendente, as bocas dos sacos já pesados. Um meninote de uns doze anos imprimia sobre cada um deles um carimbo em tinta vermelha:
ZUDE, IRMÃO & CIA.
Exportadores

     Os caminhões penetravam pelo fundo em marcha-à-ré, carregadores levavam os sacos às costas, iam dobrados com o peso. Os sacos caíam com um baque surdo nos caminhões, os choferes punham os motores em marcha, arrancavam pela rua, paravam no cais. Novamente vinham carregadores e novamente se curvavam suas costas sob o peso da carga. Corriam pela ponte, pareciam seres estranhos, negros de espantosas corcundas. O navio sueco, enorme e cinzento, engolia o cacau. Marinheiros atravessavam, bêbados, a ponte de desembarque e falavam uma língua estranha."


Transcrito de "São Jorge dos Ilhéus", de Jorge Amado, Págs. 17 e 18. Romance. Escrita iniciada em Montevidéu e terminada em Periperi, Bahia, janeiro1944. São Paulo: Martins, 12ª edição, 1966. Foto obtida em http://pt.wikipedia.org/wiki/Jorge_Amado


Em 1982 comecei minha vida profissional no comércio exterior e logo em seguida fui atuar na área que cuidava das exportações de cacau na CACEX. Uma experiência rica, que me permitiu acompanhar histórias como essa de Jorge Amado, grande escritor brasileiro, mas que podemos chamar de o grande romancista do cacau e da Bahia. São Jorge dos Ilhéus retrata um período (anos trinta) do desenvolvimento da cultura do cacau no sul da Bahia, com disputas entre fazendeiros, exportadores e importadores de cacau. Nesse contexto, pode-se entender um pouco do comércio de uma commodity que já teve um importante ciclo econômico para o Brasil e para a Bahia em particular. Períodos de altas e baixas de suas cotações no mercado internacional, que trouxeram riqueza e opulência em certos momentos, decadência e desgraça em outros, mas sempre com um fundo de pobreza e miséria do trabalho, quase escravo, nas fazendas de cacau e no porto de Ilhéus. Jorge Amado é um escritor que nunca deixou de apresentar o constraste e a desigualdade social, mas também a miscigenação e o sincretismo que tanto caracterizam  o nosso país. Em São Jorge dos Ilhéus esse cenário aparece de forma muito clara, carregado de lutas e paixões, como um bom romance requer.
Por F@bio

domingo, 5 de setembro de 2010

Atravessa Esta Paisagem o Meu sonho - Fernando Pessoa

De: Fernando Pessoa

"Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...
O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado...
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...
Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...
O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...
Não sei quem me sonho...
Súbito toda a água do mar do porto é transparente
E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele porto,
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma..."

Poesia obtida em http://www.lovers-poems.com/poesia-fernando-pessoa-atravessa-esta-paisagem.html
Imagem obtida em http://www2.ilch.uminho.pt/portaldealunos/Estudos/EP/AH/TCH/P1/Ines/fernando.html

Navergar pelos versos de Fernando Pessoa, singrar cada poema, cada estrofe, cada frase, cada palavra. Passar para o outro lado e descobrir imagens, sons, cheiros e sabores, no texto sensível do poeta maior da língua portuguesa. Pessoa é o grande porto da poesia lusa, esta é a verdadeira ode. 
Por F@bio