domingo, 7 de outubro de 2012

Apenas um navio - Lidia Maria de Melo


Apenas um navio

No ano de meia quatro,
no meio do estuário
em frente ao porto de Santos,
o porto de minha infância,
Das barcas e das catraias,
dos navios e rebocadores,
Dos trens e dos armazéns,
onde os botos,
às cinco e meia da tarde,
viraram cambalhotas
enquanto as gaivotas
fisgavam peixes no mar,
avistava-se um navio
velho, preto,
ancorado
próximo à Ilha Barnabé,
que os menos informados
confundiam com um navio comum.
Mas eu e muitas crianças,
que ansiavam
para verem os pais
(confinados),
sabíamos que ele era bem mais
que um navio qualquer
e o culpávamos
pela ausência paterna
nos almoços de domingo,
pela angústia disfarçada nos olhos de nossas mães,
pela melancolia que abraçava
todas nossas brincadeiras,
pela vontade de chorar
sem saber bem o porquê.
Nós já sentíamos tudo
e éramos tão crianças!
Só o que não entendíamos
é que o Raul Soares
era apenas um navio
e não tinha culpa de nada.
Não tinha culpa de ter virado
instrumento repressivo
no ano de meia quatro.



Lídia Maria de Melo. Raul Soares: Um navio tatuado em nós. São Paulo / Santos: Pioneira / Universidade Santa Cecília, 1995. Baixado em 07/10/2012 de: http://www.portogente.com.br/texto.php?cod=69655

Alessandro Atanes tem sido uma boa fonte para o Cargueiro. Poeta e jornalista, com ampla pesquisa sobre a literatura santista. No artigo "Golpe: poesia da exceção", Atanes nos apresenta o poema de Lídia Maria de Melo e informa que  “Apenas um navio” foi escrito em 1982,  na fase final da ditadura. O poema evoca a infância da escritora e "remete a um clima inicial de nostalgia, logo cortado pelo trauma, pela chaga no cais, a presença do navio-presídio Raul Soares no estuário, próximo à Ilha Barnabé... No poema de Lídia não é desolação que presenciamos, e sim a incerteza do Estado de Exceção após o golpe".
Navios foram concebidos como meio de transporte de pessoas e cargas, mas alguns tiveram sina terrível, como os negreiros a transportar escravos e os navios presídios, onde muitos foram confinados, maltratados e mortos. O Raul Soares era um navio misto, de carga e passageiros, de origem alemã que foi incorporado ao Lloyd Brasileiro, utilizado na navegação de cabotagem antes de virar prisão, seu triste fim. (vide “Raul Soares – Tempos de Gloria”, de Humberto de Lima Moraes em http://www.portogente.com.br/texto.php?cod=4824)

Um comentário:

  1. Olá. Você pode conhecer mais sobre o livro "Raul Soares, Um Navio Tatuado em Nós" na página da autora, no site da UBE: http://www.ube.org.br/espaco-do-autor-detalhe.asp?ID=668
    ou ainda no blog: http://lidiamariademelo.blogspot.com.br/

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