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sábado, 4 de julho de 2015

Memorial de Aires - Machado de Assis

"13 de maio 

Enfim, lei. Nunca fui, nem o cargo me consentia ser propagandista da abolição, mas confesso que senti grande prazer quando soube da votação final do Senado e da sanção da Regente. Estava na rua do Ouvidor, onde a agitação era grande e a alegria geral. 

Um conhecido meu, homem de imprensa, achando-me ali, ofereceu-me lugar no seu carro, que estava na rua Nova, e ia enfileirar no cortejo organizado para rodear o paço da cidade, e fazer ovação à Regente. Estive quase, quase a aceitar, tal era o meu atordoamento, mas os meus hábitos quietos, os costumes diplomáticos, a própria índole e a idade me retiveram melhor que as rédeas do cocheiro aos cavalos do carro, e recusei. Recusei com pena. Deixei-os ir, a ele e aos outros, que se juntaram e partiram da rua Primeiro de Março. Disseram-me depois que os manifestantes erguiam-se nos carros, que iam abertos, e faziam grandes aclamações, em frente ao paço, onde estavam também todos os ministros. Se eu lá fosse, provavelmente faria o mesmo e ainda agora não me teria entendido... Não, não faria nada; meteria a cara entre os joelhos. 

Ainda bem que acabamos com isto. Era tempo. Embora queimemos todas as leis, decretos e avisos, não poderemos acabar com os atos particulares, escrituras e inventários, nem apagar a instituição da história, ou até da poesia. A poesia falará dela, particularmente naqueles versos de Heine, em que o nosso nome está perpétuo. Neles conta o capitão do navio negreiro haver deixado trezentos negros no Rio de Janeiro, onde “a casa Gonçalves Pereira” lhe pagou cem ducados por peça. Não importa que o poeta corrompa o nome do comprador e lhe chame Gonzales Perreiro; foi a rima ou a sua má pronúncia que o levou a isso. Também não temos ducados, mas aí foi o vendedor que trocou na sua língua o dinheiro do comprador. "

Transcrito de Memorial de Aires / 1888, de Machado de Assis, Obras Completas. Vol. I, pag.1.118, Rio de Janeiro : Editora Nova Aguilar, 1992. O trecho também é citado em http://www.erratica.com.br/opus/107/ juntamente com o poema de Heinrich Heine, Navio Negreiro, citado por Machado.

Memorial de Aires é o último romance de Machado de Assis escrito sob a forma de um diário, nos anos 1888 - 1889, com anotações, descrições e reflexões do Conselheiro Aires, diplomata aposentado, curioso personagem que também aparece no livro Esaú e Jacó.

O trecho transcrito relata a euforia popular com a decretação da Abolição em 13 de maio de 1988, finalmente votada pelo Senado e sancionada pela Regente, a princesa Isabel. Machado fala com ironia que "Ainda bem que acabamos com isto [a escravidão]. Era tempo". Mais tarde, já na república, serão queimados os documentos sobre a escravidão, com o indisfarçável fito de "apagar a instituição da história". Mas a poesia continuará a perpetuá-la, como em os Navios Negreiros de Castro Alves e Heine, citado por Machado, que com seu fino humor ironiza o equívoco do poeta que escreve "Perreiro" em vez de Pereira, no original em alemão: "Bleiben mir Neger dreihundert nur/ Im Hafen von Rio-Janeiro,/Zahlt dort mir hundert Dukaten per Stück/Das Haus Gonzales Perreiro." (Vide nota do tradutor André Vallias em http://www.erratica.com.br/opus/107/)


Outros registros interessantes do texto machadiano são as referências geográficas ao Rio de Janeiro, como Rua do Ouvidor e Rua Primeiro da Março, denominações que permanecem em nossos dias. Já a Rua Nova, na data da "anotação", tivera seu nome alterado para Rio Branco, posto que em 13/02/1888, decreto municipal substituiu o antigo nome para homenagear o eminente estadista José Maria da Silva Paranhos, o Visconde do Rio Branco.
Na "anotação" do Conselheiro também é indicado que o cortejo fora "organizado para rodear o paço da cidade" referindo ao prédio do Paço Imperial (hoje museu), situado na atual Praça XV de Novembro, sede do Governo Federal até 1897, quando a presidência da república mudou-se para o Palácio do Catete.
A mais antiga rua do Rio de Janeiro tinha o nome de Rua Direita e era a mais importante da cidade no século XIX, já que nela ficava a sede o governo imperial. Originalmente, ligava o Largo da Misericórdia ao Morro de São Bento. Em 1875, seu nome foi alterado para Rua Primeiro de Março em homenagem à vitória na Batalha de Aquidabã, que pôs fim à Guerra do Paraguai. Por coincidência, essa também é a data da fundação da cidade do Rio de Janeiro.
Já a Rua do Ouvidor manteve sua denominação e estreiteza, mas perdeu importância, pois no século XIX era lá que ficava o comércio mais chique da cidade.
Por F@bio




sábado, 29 de novembro de 2014

Um Eldorado - Machado de Assis

“A capital oferecia ainda aos recém-chegados um espetáculo magnífico. Vivia-se dos restos daquele deslumbramento e agitação, epopeia de ouro da cidade e do mundo, porque a impressão total é que o mundo inteiro era assim mesmo. Certo, não lhe esqueceste o nome, encilhamento, a grande quadra das empresas e companhias de toda espécie. Quem não viu aquilo não viu nada. Cascatas de ideias, de invenções, de concessões rolavam todos os dias, sonoras e vistosas para se fazerem contos de réis, centenas de contos, milhares, milhares de milhares, milhares de milhares de milhares de contos de réis. Todos os papéis, aliás ações, saíram frescos e eternos do prelo. Eram estradas de ferro, bancos, fábricas, minas, estaleiros, navegação, edificação, exportação, importação, ensaques, empréstimos, todas as uniões, todas as regiões, tudo o que esses nomes comportam e mais o que esqueceram. Tudo andava nas ruas e praças, com estatutos, organizadores e listas. Letras grandes enchiam as folhas públicas, os títulos sucediam-se, sem que se repetissem, raro morria, e só morria o que era frouxo, mas a princípio nada era frouxo. Cada ação trazia a vida intensa e liberal, alguma vez imortal, que se multiplicava daquela outra vida com que a alma acolhe as religiões novas. Nasciam as ações a preço alto, mais numerosas que as antigas crias da escravidão, e com dividendos infinitos.”



Em “Esaú e Jacó”, de Machado de Assis, pag.141, 4ª Edição (cotejada com a edição original da Livraria Garnier, Rio de Janeiro, 1904). São Paulo: Editora Martin Claret, 2001. 









Joaquim Maria Machado de Assis, autodidata, foi cronista, contista, dramaturgo, jornalista, poeta, novelista, romancista, crítico e ensaísta. Nasceu em 21.07.1839 no Rio de Janeiro, cidade onde viveu até sua morte em 29.09.1908. Mulato, pobre, de saúde frágil, órfão de pai e mãe, foi criado pela madrasta, Maria Inês, também mulata. Primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras, que adotou seu nome – Casa Machado de Assis. É considerado o maior escritor brasileiro. “Esaú e Jacó” é seu penúltimo romance. (Leia mais em: http://www.releituras.com/machadodeassis_bio.asp)

Tenho profunda admiração pela escrita sutil e irônica de Machado, de quem já li quase toda a obra. O livro que mais me marcou é, sem dúvida, Dom Casmurro. Mas todos os seus textos são de uma riqueza literária e poética sem igual e muito a frente de seu tempo. Para quem mora no Rio de Janeiro é uma delícia acompanhar a geografia da cidade, na qual são ambientados todos os seus romances, e perceber as enormes transformações sofridas. O romance Esaú e Jacó tem por protagonistas irmãos gêmeos que, embora idênticos no físico, são oponentes e concorrentes nos desejos e personalidades, uma clara referência à parábola bíblica. Machado ambienta o romance no período da passagem do Império para a República, e trata como pano de fundo os dilemas dos que estão no poder e dele não querem apear. O trecho transcrito, realista e melancólico, aborda a situação econômica vivida no período pós proclamação da república, com a política do encilhamento, situação muito parecida com a crise econômica mundial vivida em 2008, conhecida como "bolha imobiliária". Para os que desejam conhecer melhor esse genial escritor, sugiro ler sua biografia escrita por Daniel Piza, “Machado de Assis – Um Gênio Brasileiro”, com uma abordagem de vida e obra, critica, mas sem paixões.
Por F@bio