domingo, 11 de dezembro de 2016

Yann Andréa Steiner - Marguerite Duras

"Havia a sua voz. A voz de uma inacreditável doçura, distante, intimidadora, apenas pronunciada, apenas perceptível, sempre um pouco distraída, estranha ao que dizia, separada. Ainda hoje, doze anos depois, escuto essa voz que você tinha. Ela se infiltrou no meu corpo. Não tem imagem. Fala de coisas sem importância. E se cala também.
Nós falamos, você falou da beleza do hotel Roches Noires.
Depois ficou silencioso, como se procurasse a forma de dizer o que tinha a me dizer. Você não ouvia a calma crescente que vinha com a noite, tão profunda que fui à varanda para vê-la. De tempos em tempos, automóveis passavam diante de Roches Noires, iam para Honfleur ou para o Havre. O Havre, como todas as noites, estava iluminado como para um festa, e o céu ficava por cima da cidade, nu, e entre o céu e o farol de Sainte-Adresse havia o negro cortejo dos petroleiros, que desciam, como de hábito, para os portos da França e do Sul da Europa.
Você se levantou. Olhou-me através das vidraças. Continuava com aquele ar de profunda distração."

Transcrito do livro "Yann Andréa Steiner" (pags. 18 e 19), de Marguerite Duras, tradução de Maria Ignez Duque Estrada. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1993.



Marguerite Duras, pseudônimo de Marguerite Donnadieu, nasceu em 1914, na cidade de Saigon (atual Cidade de Ho Chi Minh) e faleceu em Paris, em 1996. Um dos mais importantes nomes da literatura francesa do Século XX, foi romancista, novelista, roteirista, poetisa, diretora de cinema e dramaturga. Viveu no Vietnã até 1932 quando mudou-se para Paris. Durante a 2ª Guerra Mundial engajou-se na Resistência Francesa. Estudou Direito, mas tornou-se escritora e obteve fama mundial com o romance "O Amante", com o qual ganhou o prêmio Goncourt de 1984. É autora de diversas peças de teatro, novelas, filmes e contos. Foi associada ao movimento chamado nouveau roman (novo romance) e com o existencialismo. Além O Amante, outros livros de destaque foram A Dor, O Amante da China do Norte e O Deslumbramento. Ficou também conhecida como a roteirista do filme "Hiroshima, meu amor", dirigido por Alain Resnais. Mas dirigiu filmes próprios, inclusive o conceituado "India Song" de 1976, porém sem o renome alcançado na carreira literária.
No trecho reproduzido do livro Yann Andréa Steiner, Duras faz referência ao porto de Havre, iluminado pelos navios petroleiros. O romance que prima pela linguagem coloquial que marcou a obra de Duras, traz uma narrativa fragmentada, num ritmo quase cinematográfico. O texto é bastante poético e com forte carga emocional, com frases curtas e diálogos desconcertantes, possíveis referências autobiográficas e ambientação cambiante.
Sobre seu ofício, Duras escreveu: "Por que algumas pessoas têm necessidade de viver duas vezes? Uma quando vivem, a outras quando escrevem? E por que a segunda vez é a mais importante? Isso é tão mais misterioso como concluir que as horas de sono e de sonho são mais importantes que as de vigília ... O dia é legível, a noite ilegível. O escritor é aquele que pode ler a noite. A gente nunca sabe aonde um bom escritor quer nos levar..."
Por F@bio 

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Ver Navios - Haroldo de Campos


VEM NAVIO
   VAI NAVIO
      VIR NAVIO
         VER NAVIO
            VER NÃO VER
         VIR NÃO VIR
      VIR NÃO VER
VER NÃO VIR
   VER NAVIOS


Haroldo de Campos (1929 - 2003), paulistano, poeta, tradutor e professor. Haroldo e o irmão Augusto foram dois dos grandes nomes da poesia concreta, parte do Concretismo, movimento artístico originário do Abstracionismo Geométrico que a partir do anos 30 do Século passado marcou a criação plástica e poética na Europa. A poesia concreta procura valorizar o espaço e o grafismo,  tornando a pontuação desnecessária, pois espaço e a forma geométrica dão às palavras uma maior plasticidade.

Em 1952, Haroldo, Augusto e Décio Pignatari rompem com o Clube da Poesia do qual faziam parte desde 1949, por divergirem do conservadorismo predominante. Criam o grupo "Noigandres" e passam a publicar poemas em sua revista. Em 1956 lançam o movimento concretista, ao qual Haroldo se manteve fiel até 1963, quando volta-se para o projeto do livro-poema "Galáxias".

A seguir, uma análise sucinta e interessante do poema feita pelo professor Kleber Henrique (http://poemasdeamoremorte.blogspot.com.br/2011/02/poesia.html):

"Nessa poesia de Haroldo de Campos, nota-se a decomposição da expressão “ver navios” a fim de produzir novas significações. Além das oscilações produzidas pela repetição (assonância) do fonema / v /, o que nos remete ao balanço do mar, vejo a tensão da espera do eu-lírico pelo navio que nunca vem na consoante / r /. A hesitação do seu humor e a angústia da possibilidade da chegada com a frustração da ausência, afiguram-se na variação dos ditongos / io / do começo com o / ão / a partir do verso 5, enfim, a náusea de ficar a “ver navios”."

Assim, à configuração gráfica que remete a um barco, junta-se o som da correta dicção, com suas pausas e acentos, a provocar o sentimento que o texto traz implícito. É o poeta ampliando as sensações da letra de sua poesia.
Por F@bio

terça-feira, 8 de novembro de 2016

A Carga - Ledo Ivo

Uma rua me conduzia até o porto.
E eu era a aruá com as suas janelas dilaceradas
E o sol depositado na areia materna.
Eu levava para a beira do mar tudo o que surgia
À minha passagem: portas, rostos, vozes, colônias de cupim e
Réstias de cebola que amadureciam na sombra
Dos armazéns providos. E sacos de açúcar. E as chuvas
Que haviam enegrecido os telhados das casas.
Era um dia de dádivas. Nada estava perdido.
As ondas celebravam a beleza do mundo.
A terra ostentava a promessa de vida.
E eu depositava a minha leve carga
Nos porões dos navios enferrujados.


Obtido de http://www.antoniomiranda.com.br/iberoamerica/brasil/ledo_ivo.html


Lêdo Ivo - jornalista, poeta, romancista, contista, cronista e ensaísta brasileiro. Foi membro da Academia Brasileira de Letras. Alagoano, nascido em Maceió em 1924 faleceu em 2012 em Sevilha, Espanha.

Todos carregamos nossas cargas de vida. Lembranças, dores, amores, sonhos, recordações, espantos, assombrações, medos, o sol e o sal. Levamo-nas em nossa jornada pelos caminhos que temos que trilhar até poder depositá-las nos depósitos de nossas memórias, navios enferrujados, revolvidos em nossas terapias.
Por F@bio

quarta-feira, 11 de maio de 2016

O Retrato de Dorian Gray – Oscar Wilde

“De repente, o cocheiro deteve o cavalo brutalmente na parte superior de uma ruela escura. Por cima dos telhados baixos e das fileiras irregulares de chaminés das casas, podiam-se ver os mastros negros de alguns barcos. A névoa esbranquiçada aglomerava-se em torno das vergas, como velas fantasmagóricas.
- Não é por aqui, senhor? – perguntou o cocheiro, com sua voz rouca, pela janelinha.
Dorian estremeceu, observando à sua volta.
- Sim, é aqui – respondeu, e desceu apressadamente. Entregou ao cocheiro a gratificação prometida e dirigiu-se rapidamente ao cais.
Aqui e ali brilhavam as lanternas colocadas na popa de algum enorme navio mercante. A luz se movia e ia refletir-se nas poças de água. Uma claridade avermelhada desprendia-se de uma grande embarcação que fazia seu carregamento de carvão. A calçada enlameada assemelhava-se a um impermeável molhado.
Estugou o passo em direção à esquerda, olhando para trás de vez em quando, para ver se estava sendo seguido. Ao fim de sete ou oito minutos, chegou a um miserável casebre, que se erguia humilde entre duas fábricas modestas. Em uma das janelas superiores, havia uma lâmpada. Deteve-se e bateu de modo especial.
Pouco depois, ouviram-se passos no corredor e o barulho de correntes que se desprendiam. A porta abriu-se silenciosamente e ele entrou sem endereçar sequer uma palavra à figura informe que desapareceu na escuridão, quando ele penetrou na habitação. No fim do vestíbulo, estava pendurada uma cortina verde e esfarrapada, que o vento tempestuoso da rua ergueu por um momento. Dorian afastou-se e entrou em um grande aposento de teto baixo que tinha o aspecto de um salão de baile de terceira classe. Alguns lampiões de gás, de chama viva e fulgurante, projetavam suas imagens deformadas, nas paredes. Refletores de metal ensebados, colocados na parte posterior, formavam trêmulos discos de luz. O solo estava coberto de serragem amarela, já bastante pisada e misturada com barro, e notavam-se nele manchas arredondadas e escuras de vinho derramado. Alguns malaios, acocorados junto a um fogareiro de carvão, jogavam dados de osso, e quando falavam mostravam dentes alvos. Em um canto, a cabeça oculta entre os braços, jazia um marinheiro estendido sobre a mesa...
No extremo da sala havia uma escadinha que conduzia a um quarto escuro. Dorian subiu precipitadamente os três degraus desengonçados e imediatamente chegou ate ele um forte odor de ópio. Lançou profundo suspiro e as asas de seu nariz vibraram de prazer. Quando entrou, um jovem de cabelos louros e lisos, que se inclinava sobre uma lâmpada, para acender um cachimbo longo e delgado, olhou-o e dirigiu-lhe uma saudação hesitante.
- Você aqui, Adrian? – murmurou Dorian.
- Onde haveria de estar? – respondeu com indiferença. – Meus amigos agora já não me dirigem a palavra.
- Pensei que você havia deixado a Inglaterra.
- Não. Darlington já não vai fazer nada. Meu irmão pagou finalmente a letra. George também já não fala comigo ... Que me importa! ... – acrescentou com um suspiro – enquanto tiver essa droga, não precisarei de amigos. Acho que tive amigos demais.
Dorian recuou e olhou em volta as figuras grotescas que jaziam nas mais fantásticas posições sobre os colchões esfarrapados. Experimentava verdadeira fascinação ao ver aqueles olhos fixos e sem brilho. Conhecia bem os paraísos estranhos em que eram acolhidos e os infernos tenebrosos que tinham de enfrentar para atingir o segredo de um novo prazer. Estavam melhor que ele que era prisioneiro de seu pensamento. A memória corroia a sua alma como horrenda moléstia. De vez em quando, tinha a impressão de ver os olhos de Basílio Hallward a fixá-lo. Ali não poderia permanecer, todavia. A presença de Adrian Singleton perturbava-o. Precisava de um lugar em que fosse inteiramente desconhecido. Tinha de fugir de si mesmo.
...
Dorian Gray acelerou o passo ao longo do cais, sob a chuva miúda que caía. O encontro com Adrian Singleton tinha-o  comovido estranhamente, e espantava-se de que a ruína daquela vida juvenil  fosse realmente culpa sua, como lhe havia dito Basílio Hallward, de maneira tão infame e ofensiva. Mordeu os lábios e, durante um momento, seus olhos se umedeceram. Mas, no final de contas, que lhe importava tudo aquilo? A vida era muito breve para que se pudesse suportar sobre os ombros o peso dos erros do próximo. Cada homem vivia sua própria vida e pagava seu próprio preço para vivê-la. O que era para lamentar é que uma pessoa tivesse de pagar tanto por um só erro. E era preciso pagar cada vez mais, com efeito. Em suas relações com os homens, o Destino nunca cessa de cobrar suas dívidas.”



Transcrito de: O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, tradução de Oscar Mendes. São Paulo: Abril Cultural, 1981. Pags: 221 a 225


O livro “O Retrato de Dorian Gray”,  do escritor irlandês Oscar Wilde, considerado seu único romance, foi publicado em 1891. Wilde notabilizou-se como dramaturgo, poeta e contista.
O protagonista Dorian Gray posa para uma pintura do artista Basílio Hallward que retrata toda a beleza e jovialidade do rapaz. O pintor apresenta Lorde Henry Wotton, que faz Dorian tomar consciência de sua beleza e do valor de sua juventude e o inicia num mundo de vícios e desregramento. Apaixonado pela própria imagem e influenciado pelas palavras de Lorde Henry, Dorian expressa o desejo de permanecer eternamente belo como no retrato:

"Como é triste! - murmurou Dorian,  com os olhos fixos  ainda  no seu  retrato - Como é triste! Tornar-me-ei velho, horrível, espantoso. Mas este retrato permanecerá sempre jovem. Não será nunca mais velho do que neste dia de junho… Se ocorresse o contrário! Se eu ficasse sempre  jovem, e esse retrato envelhecesse! Por isso - por isso - eu daria tudo! Sim, não há nada no mundo que eu não desse. Daria até a minha própria alma!"  (pag. 36).

Com isso, Dorian faz o voto de Fausto, entrega a alma ao diabo ou a Lorde Henry Wotton. Ao fazer esse voto, a beleza de Dorian irá tornar-se sua própria miséria. Nesse romance, Wilde faz uma contundente crítica à sociedade aristocrática inglesa pela sua falsa moralidade, superficialidade e valorização excessiva da aparência. Wilde traz uma discussão incessante sobre o bem e o mal, o moral e o imoral e a busca do prazer a qualquer preço, além de abordar a questão da homossexualidade num triângulo formado por Dorian, Basílio e Lorde Henry. Isto levou a que o livro fosse censurado e provocasse violentos debates e intensa polêmica.
No trecho em destaque, Dorian já em sua fase mais violenta e desprezível, busca o prazer a todo custo, não importando que para isso tenha que sair de sua mansão na Londres aristocrática para buscar, na distante e decrépita zona portuária, o prazer por meio do consumo de ópio. Mas a fuga já não era mais possível, a culpa o perseguia, prisioneiro de sua consciência e miséria.
por F@bio

sábado, 2 de abril de 2016

Navios Iluminados - Ranulpho Prata


“Uma manhã luminosa. Azul por toda parte: nas águas, no céu, nos morros. Vinha do mar um vento fresco, que dava gosto a gente sentir no rosto e nas mãos. As bandeiras dos vapores atracados pareciam contentes, agitando-se, muito vivas, nos ares claros.
A turma 65 foi descarregar açúcar pernambucano, de um  Lloyd branco e preto. O ‘periquito’, pequeno guindaste hidráulico começou a trabalhar, empilhando a sacaria no cais. Os homens aproximaram-se, lerdos, como bois para a carga. O saco pegado por dois trabalhadores era colocado na cabeça de um terceiro, que ‘palmilhava’ nos ares, aparando-o com a mão direita espalmada, o braço firme e em arco, de modo que o peso se fizesse sentir gradualmente, e poupo a pouco, e não de sopetão, num desabamento repentino. Bem ajeitado na cabeça, era levado para dentro do armazém, onde cresciam rumas colossais, sendo possível, às vezes, ‘remontar’, subir escadas para ir atirá-los lá em cima.
Fez-se fila de homens carregados.
Severino aproximou-se para receber a sua carga, a primeira, tão ansiosamente desejada e esperada por tanto tempo. Tinha confiança nos seus músculos. Perto da pilha ouviu um dos companheiros dizer para o outro:
- Olha o novato...
De repente, sem que esperasse, quando viu foi o saco despencar sobre a sua cabeça, dando-lhe uma forte dor na nuca, escorregar-lhe pelas costas e cair no chão estourado. Não soubera palmilhá-lo, não tinha prática. Os dois homens riram um riso ruim.
...
Finda a quizilha, Severino perfilou-se, de novo, junto à pilha, para receber outro saco. Tinha o rosto trancado e enviesado para os companheiros, como a preveni-los, um olhar de rancor. E o saco veio desta vez devagar, pousando lento, na sua cabeça, quase docemente. O pescoço como que se achatou, comprimido, as veias saltaram, encordoando-o; entesaram-se lhe os músculos do tórax, criando relevo debaixo da camiseta rala de algodão. E lá saiu de corpo duro, o peso fazendo com que ele bamboleasse os quadris, como mulher. Penetrou no armazém, cuja porta estava esteirada de pó de serragem para evitar escorregos.
...
Quando às quatro e meia as sirenes puseram ponto final no trabalho, o porão do Lloyd estava limpo, a descarga finda...”
 



Transcrito de “Navios Iluminados”, de Ranulpho Prata, pags. 73 a 78. São Paulo: Scritta, 1996.


Ranulpho Prata, 1896 – 1942, sergipano de Lagarto. Autor também dos romances O triunfo, Dentro da Vida, O Lírio na Torrente, do livro de contos A Longa Estrada e do documentário Lampião. Conforme Alessandro Atanes, em Esquinas do Mundo – Ensaio sobre a História e Literatura a partir do Porto de Santos (São Paulo: Dobra Editorial, 2013), Prata formou-se na Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro em 1919, após ter iniciado os estudos em Salvador. Exerceu a medicina no interior de Minas Gerais e de São Paulo, Aracajú, Rio de Janeiro e em Mirassol (SP). Em 1927 assume uma vaga de médico radiologista na Santa Casa de Santos e posteriormente atende no Hospital Beneficiência Portuguesa e em seu consultório. Com o tempo, clinica em outras instituições, como o Ambulatório Gafrée e Guinle - família proprietária da Companhia Docas de Santos. Prata fixou-se na cidade portuária até sua morte em 1942.

Navios Iluminados é um romance de forte cunho social, no qual Prata revela sua sensibilidade pelo drama vivido pelos emigrantes nordestinos e pelos trabalhadores portuários. Com seu rigor detalhista e descritivo,  o romance nos apresenta um painel da sociedade santista, expondo a dura realidade vivida pelos trabalhadores das docas. No início do Século XX, o Brasil tinha uma economia baseada na monocultura de exportação, o campo e o porto eram os polos dinâmicos. Nos dois ambientes, os trabalhadores enfrentam condições precárias de trabalho, com baixíssima remuneração, péssimas moradias e saúde precária. Mas o autor vai além da denúncia, com abordagem psico social, crítica de costumes e tradições em uma época em que o Brasil dava os primeiros passos rumo à industrialização e urbanização.

Por F@bio

quarta-feira, 2 de março de 2016

Boa Viagem, Senhor Presidente – Gabriel Garcia Márquez


“...Havia vivido na Martinica todos os dias do exílio, sem outro contato com o exterior que as poucas notícias do jornal oficial, sustentando-se com as aulas de espanhol e latim num liceu oficial e com as traduções que às vezes Aimé Césaire encomendava. O calor era insuportável  em agosto, e ele ficava na rede até o meio-dia, lendo ao arrulho do ventilador no teto do dormitório. Sua mulher cuidava dos pássaros que criava soltos, mesmo nas horas de mais calor, protegendo-se do sol com um chapéu de palha de abas grandes, adornado de morangos artificiais e flores de organdi. Mas quando o calor diminuía era bom tomar a fresca na varanda, ele com a vista fixa no mar até que chegavam as trevas, e ela em sua cadeira de balanço de vime, com o chapéu de aba quebrada e as bijuterias em todos os dedos, vendo passar os navios do mundo. “Esse vai para Puerto Santo”, dizia ela. “Esse quase nem pode andar com a carga de banana-ouro de Puerto Santo”, dizia. Pois achava impossível que passasse um barco que não fosse de sua terra. Ele bancava o surdo, embora no fim ela tenha conseguido esquecer melhor que ele, porque ficou sem memória. Permaneciam assim até que terminavam os crepúsculos fragorosos, e tinham que se refugiar na casa derrotados pelos mosquitos. Num daqueles tantos agostos, enquanto lia o jornal na varanda, o presidente deu um salto de assombro.
- Porra! – disse. – Morri no Estoril!
Sua esposa, levitando no torpor, espantou-se com a notícia. Eram seis linhas na quinta página do jornal que era impresso na virada da esquina, onde publicavam suas traduções ocasionais, e cujo diretor passava para visitá-lo de vez em quando. E agora dizia que tinha morrido no Estoril de Lisboa, balneário e abrigo da decadência europeia, onde nunca havia estado, e talvez o único lugar no mundo onde não teria querido morrer...”

Transcrito do conto “Boa viagem, senhor presidente” em “Doze Contos Peregrinos”, de Gabriel Garcia Márquez (págs. 40 e 41). Tradução de Eric Nepomuceno. Rio do Janeiro: Record, 1992.

Deparei-me com o livro Doze Contos Peregrinos, que ainda não havia lido, na biblioteca do Espaço Tribuna Livre Cultural, em Lumiar - Nova Friburgo (RJ). Lá estava com a minha mulher para passar o reveillon. Frequentamos essa região serrana desde 1981 quando lá acampamos a beira rio, em meio a bananeiras e sapos. Era carnaval e Lumiar só tinha luz no período vespertino, fornecida por um gerador a óleo. Cortada por rios encachoeirados, o lugar é muito bonito e tem um tema musical único, composto por Beto Guedes. O Espaço é um presente do casal Vânia e Luís para Lumiar e região. Dedicado às artes, conta com anfiteatro, biblioteca e café. No local ocorrem as sessões do cineclube Lumiar, acontecem shows, palestras e são encenadas peças teatrais. Fomos para lá com intuito de tomar um café, mas ao passar pela biblioteca, os livros exercem um poder de atração impossível de resistir. Lá estava a primorosa edição de Doze Contos Peregrinos. Pude folhear e pegar emprestado sem qualquer problema, mesmo avisando que não teria como devolver com brevidade. Vânia, de forma tranquila, incentivou-me a levá-lo dizendo que não havia problema, que devolvesse quando voltasse à Lumiar ou  enviasse pelos Correios ou emprestasse para outra pessoa. “O que importa é que o livro seja lido”. E pra que outro fim o autor escreve e o editor edita. Livros são para serem lidos e se a prosa nos encanta, aumenta o prazer de devorar cada palavra. Garcia Márquez, no prólogo, afirma que “o esforço de escrever um conto curto é tão intenso como o de começar um romance. Pois no primeiro parágrafo de um romance é preciso definir tudo: estrutura, tom, estilo, ritmo, longitude e, às vezes, até o caráter de algum personagem. O resto é o prazer de escrever...”. Para o leitor, é prazer de ler.
No conto “Boa viagem, senhor presidente”, Gabo nos traz o caso de um deposto presidente de uma república caribenha, Martinica, que vai se tratar da saúde em Genebra, onde encontra um casal de concidadãos que traçam um plano para se beneficiar da pretensa influência e prestígio do presidente moribundo. Por fim, acabam mesmo se envolvendo afetivamente e ajudando-o a retornar ao seu país, ato que o reanimou, fazendo ressurgir nele o desejo de retornar à vida política.

No livro, Gabo homenageia vários artistas, como Vinicius de Moraes em "Só vim telefonar". No conto em comento, o presidente tem como amigo e provedor Aimé Fernand David Césaire (1913 — 2008). Nascido na Martinica, foi um dos mais importantes poetas surrealistas do mundo e considerado, juntamente com o Presidente senegalês Léopold Sédar Senghor, o ideólogo do conceito de negritude. Além de poeta, Aimé Césaire foi  dramaturgo e ensaísta, com obra marcada pela defesa das raízes africanas.
Por F@bio